O QUE FOI A REFORMA PROTESTANTE E QUAL A SUA RELEVÂNCIA HOJE? (PARTE 2/4)

A TEOLOGIA DA REFORMA: A DOUTRINA DA SALVAÇÃO E A AUTORIDADE DA IGREJA.

O Protestantismo crê na salvação somente pela graça, por meio somente da fé e por intermédio de Cristo. Mas o que isso significa? A graça é a causa, a motivação; a fé é o meio, o modo; e Jesus Cristo é o agente, o realizador. Deixe-me contar uma ilustração que pode ajudá-lo:

Imagine que você esteja caminhando na praia e encontre um homem observando o mar. Você pergunta se ele vai entrar e ele responde que não e que você também não deveria porque o mar está muito agitado hoje. Mesmo assim, você não vê problema e entra no mar, passado algum tempo, uma onda mais forte chega e depois lhe puxa mais para o fundo de forma que você não alcança mais o chão e não consegue mais voltar. Apavorado e sem saber o que fazer você avista aquele homem que estava na praia nadando em sua direção, ele traz consigo uma boia para você segurar. Chegando na orla da praia você pergunta aquele homem porque ele saiu de sua posição e arriscou a vida para te salvar apesar de você ter ignorado seus alertas. Aquele homem vira para você e diz: “eu sou uma salva-vidas, me arriscar para salvar pessoas é a minha função, minha motivação, não importa quem seja”.

Fazendo uma analogia entre nossa ilustração e a doutrina da salvação diríamos que o salva-vidas é Jesus Cristo, a motivação do salva-vidas que na ilustração é o seu dever seria a graça, e a boia utilizada pelo salva-vidas seria a fé. Portanto, nosso salvador é unicamente Jesus Cristo, o meio utilizado por Jesus não são obras, mas a fé, e aquilo que motivou, impulsionou o nosso salvador foi a graça (favor imerecido). Perceba que não há espaço para obras, méritos ou outros mediadores; por isso utilizamos o “somente”, somente pela graça, somente pela fé e somente Cristo Jesus. Não foi sua família, aparência ou riquezas que moveu Jesus até você, Maomé, Maria, budas, Allan Kardec, Charles Russel, anjos, Papas Ellen White ou qualquer outro nome que morreu no seu lugar para te justificar; não foram as obras de caridade, a lei mosaica, a abstinência de alimentos que o conectaram com a obra de Cristo, mas foi a fé, que assim como a graça é um dom de Deus. Isso diferencia a fé evangélica de todas as outras manifestações religiosas, somente pela graça, por meio da fé e por intermédio de Cristo Jesus.

Com isso em mente precisamos olhar para o catolicismo atual e de 1517. Percebemos que o problema da ICAR não está na graça, na fé ou em Jesus, mas está no “SOMENTE”. Os sacramentos, os santos, as obras e a nossa retidão são de suma importância para a salvação. Além de valorizar essas coisas, o grande problema deste ensino é que ele diminui a obra de Cristo e coloca em xeque a soberania de Deus.

Na concepção católica todos nascemos pagãos, por isso devemos ser batizados ainda crianças e assim tornarmos cristãos, até que tenhamos condições de “tomarmos essa decisão” sozinho e conscientemente. Temos aqui o primeiro “sacramento” da igreja católica, todos esses sacramentos são, na visão católica, importantíssimos e praticamente essenciais para a salvação. Quando uma criança batizada cresce e passa a ter condições de professar sua fé sozinha ocorre o segundo sacramento católico chamado de crisma ou confirmação. Porém esses sacramentos não são o suficiente para salvação pois a pessoa continua pecando ao longo de sua vida. Por isso ela precisa constantemente renovar sua santificação e salvação. Aqui entram outros 2 sacramentos: A eucaristia (ceia, cuja primeira participação é chamada de “Primeira Comunhão”) e a penitência ou reconciliação que consiste na confissão do fiel, ao padre, de seus pecados que por sua vez dá direções para o fie, “faça tantas orações do Pai Nosso, tanas aves Marias, e seus pecados estão perdoados”.

Além desses há outros três sacramentos que pela natureza de suas realizações não abarcam todos os fiéis, mas tem o mesmo peso dos demais: O casamento, por isso que a igreja católica não nega a realizar casamentos mesmo que sejam de pessoas que não costumam viver conforme o cristianismo, o casamento é uma maneira de santificar, de renovar a graça e ajudar os noivos a se encontrarem com Deus. Temos também a ordenação ao sacerdócio, quando um católico é ordenado a viver da e pela igreja isso é considerado como sacramento. Por fim temos a extrema-unção que é realizada aos enfermos ou a pessoas que estejam em seu leito de morte o sacerdote entre outras coisas unge o enfermo.

Mas nem todos os sete sacramentos são suficientes para garantir a salvação. A falsa doutrina do purgatório ensina que dificilmente uma pessoa vai direto ao céu ou inferno quando morre. A grande maioria vai ao purgatório onde sua alma será purgada, purificada, para que ela tenha condições de entrar no céu. Tais ensinos foram a base para a instituição das chamadas INDULGÊNCIAS. Por isso que mesmo após a morte a ICAR realiza orações pelo morto e rituais como a missa de sétimo dia. Vamos fazer uma pausa aqui e observar como até agora e daqui em diante os três “somentes” que estudamos vão por água abaixo. Pessoas como o ladrão na cruz, que se converteu, só precisaram crer em Jesus, ele não foi batizado, não teve missa de sétimo dia nem nada, e assim como ele nós não precisamos renovar nossa graça através de obras, aquele que começou a boa obra é quem vai terminá-la e não nossos parentes e amigos rezando por nós após nossa morte. A Bíblia é clara em dizer que ao homem está destinando morrer uma vez só vindo depois disso o juízo. Os únicos méritos que existem na salvação são os de Cristo que cumpriu a lei por nós.

                                                                     Martinho Lutero no Círculo dos Reformadores, 1625–50 (óleo sobre painel), de um artista da Escola Alemã.

A VENDA DE INDULGÊNCIAS

Voltando aos desvios do catolicismo havia algumas pessoas que tiveram uma vida tão reta, ou tão cheia de boas obras, com tantos méritos que elas não precisaram passar pelo purgatório e foram direto para o céu. Era o caso dos apóstolos, da família de Cristo, dos mártires e de mais alguns outros. É aqui que entram as famosas INDULGÊNCIAS. Na visão católica o Papa tinha acesso a esses méritos que estavam “sobrando” e que por ter as chaves da igreja ele poderia transferir esses méritos para outra pessoa e isso era feito através de um documento que era vendido por toda a Europa chamado INDULGÊNCIA. Uma pessoa poderia comprar uma indulgência pelos seus pecados cometidos, pelos seus pecados que serão cometidos e até pelos seus familiares que já morreram. É claro que isso iria vender, imagine um fiel que se preocupa com a salvação de um familiar que ele considera pagão, é lógico que ele compraria uma indulgência, que ele daria mais ofertas, que ele doaria parte de suas terras para a ICAR e investiria fortemente em qualquer coisa que pudesse salvar o ente querido, contrariando a palavra de Deus que diz que cada um prestará contas de si mesmo a Deus.

Veja só a tese 82 de Martinho Lutero pregada em Wittenberg em 31/10/1517: “Eis um exemplo: Por que o papa não tira duma só vez todas as almas do purgatório, movido por santíssima' caridade e em face da mais premente necessidade das almas, que seria justíssimo motivo para tanto, quando em troca de vil dinheiro para a construção da catedral de São Pedro, livra um sem-número de almas, logo por motivo bastante Insignificante?”

Um famoso “vendedor” de indulgências desse período que inclusive discutiu com Lutero foi “Johann Tetzel”. Lutero se irritou com uma espécie de jingle que Tetzel recitava enquanto colhia doações e vendia indulgências: "Assim que a moeda no cofre tilintar, a alma do purgatório irá saltar”. Esse contexto de crédito e débito foi o estopim teológico da Reforma Protestante.

Quando estudamos esse tema fica martelando em nossa cabeça o questionamento: "Como as pessoas poderiam acreditar em tais ensinos?" Devemos lembrar que muitas pessoas eram analfabetas e as que sabiam ler não tinham acesso à Bíblia por sua produção ser difícil, cara e, porque o latim era a linguagem clerical. As missas, os documentos, os livros de teologia e a própria Bíblia estavam em latim. Inclusive para justificar o uso de tantas imagens em suas catedrais a ICAR dizia que os desenhos eram uma forma de conectar aquelas pessoas simples com as verdades da palavra de Deus. Lembrando que sempre existiram diversos grupos divergentes do catolicismo, mas esses grupos além de má reputação não tinham até aquela época uma máquina com a prensa para facilitar a tradução e cópia da Bíblia.

                                                                                                  Johan Tetzel

A AUTORIDADE FINAL NA e DA IGREJA

E aqui nós vamos para um outro ponto da teologia da Reforma Protestante. Os reformadores começaram a questionar a venda de indulgências (justificação somente pela fé x justificação pela fé e por obras), mas essa discussão levou o debate para outro tema, “Quem é a autoridade final da Igreja?” Pensa só, falamos de como as indulgências eram usadas para levar as pessoas do purgatório ao céu, mas quem disse isso? Quem deu autoridade do Papa de fazer essa “transferência”? E de onde veio esse tal de purgatório? Foi assim que nos anos que sucederam a 31 de outubro de 1517 que os protestantes passaram a questionar não somente a venda de indulgências, mas toda tradição católica que não se fundamentava na Bíblia. Em seus debates, homens como Lutero e Zuínglio (falaremos deles amanhã) mostravam a incoerência das práticas católicas com a Bíblia enquanto seus adversários argumentavam com documentos de concílios e bispos do passado e do próprio Papa.

Em resumo podemos dizer que o protestantismo coloca somente a Bíblia como fonte de autoridade da Igreja, portanto tudo deve ser submetido e analisado pelas Escrituras. Enquanto os católicos acreditam que o papa e a tradição possuem essa autoridade. Para os católicos houve uma sucessão apostólica que dá os líderes da igreja autoridade parecida com a dos apóstolos do primeiro século. Enquanto o protestantismo diz que o ensino e autoridade dos apóstolos permanece o mesmo através dos seus escritos (o Novo Testamento). Cristo é a rocha, é a mensagem, é o próprio Deus e seus apóstolos são aqueles que edificaram a igreja de Cristo sobre o fundamento Jesus Cristo; e depois desse período ninguém pode ou deve reivindicar tal autoridade.

POR QUE DIA 31 DE OUTUBRO?

No dia 31 de outubro de 1517 o monge agostiniano Martinho Lutero pregou o que viria a ser conhecido como as 95 teses na porta da catedral da cidade de Wittenberg (Alemanha). Em resumo era uma crítica ao sistema de venda de indulgências (vamos falar mais sobre isso amanhã). Lutero não tinha a intenção de iniciar uma Reforma tanto é que as 95 teses foram originalmente escritas em latim (linguagem do clero e dos acadêmicos), mas seus alunos traduziram para o alemão (esses seminaristas...). Alguns estudiosos não gostam muito desta data, a teologia de Lutero ainda estava se formando então as 95 teses não criticam boa parte dos dogmas que os protestantes questionaram, mas essa data acabou ganhando essa fama e sendo celebrada e lembrada até hoje.

André Félix Augusto
Professor de Teologia Sistemática