O QUE FOI A REFORMA PROTESTANTE E QUAL A SUA RELEVÂNCIA HOJE? (PARTE 3/4)

REFORMA OU REFORMAS?

Embora utilizemos o termo no singular para falar de modo geral do início das atuais denominações do Protestantismo; tivemos quatro ou cinco movimentos dentro disso que chamamos de “Reforma” por isso alguns optam por dizer “Reformas”. Em geral, quando falamos de Reforma destacamos as semelhanças de todos esses grupos que vieram a ser as denominações protestantes e suas diferenças com o catolicismo. E quando falamos Reformas afastamos o catolicismo e passamos a olhar internamente quem são os protestantes e destacamos mais as suas diferenças.

O debate sobre a doutrina da salvação (justificação somente pela fé x indulgências) foi tomando outro rumo. Os protestantes expunham textos bíblicos e os católicos expunham a interpretação dos papas e dos concílios da igreja. A questão agora girava em torno da autoridade final na igreja e sobre a igreja. Visto que a autoridade do papa e da tradição foi desqualificada tudo que eles disseram estava sob suspeita. Quando isto aconteceu, um trabalho muito grande foi feito para reestudar toda teologia com as lentes bíblicas e não com as lentes da tradição católica. Os protestantes concordavam com a justificação pela fé somente, que a salvação é pela graça, pela supremacia e suficiência de Cristo como mediador e que somente a Bíblia possuía autoridade sobre a igreja. Mas divergiam em questões secundárias como a forma de batismo, administração da igreja e organização do culto. Quando falamos das diferenças entre os protestantes falamos de “Reformas” no plural, ao invés de “Reforma” no singular.

REFORMA EVANGÉLICA: Popularmente conhecida como Reforma Luterana, começou na Alemanha e teve como ícones nomes como: Martinho Lutero, Johannes Bugenhagen, Filipe Melâncton. Embora provavelmente tenham sido os menos radicais, já que a princípio não queriam romper com a igreja católica, mas apenas mostras seus erros, foram essenciais no aperfeiçoamento de doutrinas como a da justificação pela fé. Os Luteranos acreditam na presença espiritual de Cristo na ceia, até hoje a religião oficial da Alemanha é o luteranismo (embora alguns movimentos romperam com o Luteranismo oficial) e a liturgia do culto é a mais parecida com o catolicismo do que os demais protestantes o que era supersticioso foi tirado, mas ainda encontramos velas, vitrais, estolas entre outras coisas.

OS REFORMADOS (REFORMADA): Popularmente conhecida como Reforma Calvinista, os irmãos desta ala da Reforma foram os primeiros a usar o termo “reforma”. João Calvino é provavelmente o principal nome desta ala por isso muitas vezes chamamos de “Calvinista” ao invés de “Reformada” este movimento começou a se desenvolver na Suíça e contou com nomes como: Ulrico Zuínglio, João Calvino, Teodoro de Beza, Martin Bucer, Heinrich Bullinger. Os reformados foram um pouco mais longe que os evangélicos (luteranos), em especial por conta da liturgia mais delimitada e pregarem uma separação um pouco maior entre Igreja e Estado (embora acreditassem que a Igreja deveria influenciar o Estado) mas a maior diferença entre esses dois primeiros grupos (Evangélicos e Reformados) era na questão da ceia do Senhor, diferentemente dos luteranos os reformados, em especial Zuínglio, via a ceia como um memorial e que não tinha essa presença real ou mística de Cristo. Esse pensamento inclusive influenciou mais tarde os batistas em sua visão da ceia como uma ordenança que anuncia a volta de Cristo e relembra seu sacrifício. Um pouco mais tarde, com Calvino, os reformados passaram a ver a ceia como meio de graça, ou seja, por si só ela não salva ou transfere santificação, mas nos abençoa e edifica; assim como acontece com a oração, pregação e (na visão deles) o batismo. Esse segundo posicionamento dos reformados influenciou grandemente os presbiterianos. A publicação de Zuínlgio dos 67 Artigos Para o Mundo Cristão em 1523 é considerado o início do movimento reformado, embora antes disso os que viriam a ser reformados já faziam muitas críticas ao catolicismo, inclusive é um documento de teologia bem “mais protestante” que as 95 teses de Lutero publicadas em 1517.


                                                                            Muro dos Reformadores. Genebra, Suíça

EPISCOPAL: Popularmente conhecida como Reforma Anglicana esse é o movimento da Reforma Protestante que começou na Inglaterra, de maneira bem estranha, com o rei Henrique VIII mas que foi de fato realizada pelo seu filho Eduardo VI, e um pouco por sua filha e Isabel (Elizabeth I). Contou também com a participação de sacerdotes piedosos que contribuíram para a Reforma da Doutrina da igreja anglicana. Alguns nomes conhecidos da Reforma Inglesa, além dos já citados são: Thomas Cranmer, William Tyndale, Rei Tiago (King James)

É certo que Henrique VIII apenas quisesse uma desculpa para romper com a ICAR devido as suas aventuras amorosas, divórcios e casamentos e para obter um controle maior das terras na Inglaterra. Certamente ele sabia no clero e no povo inglês havia muita insatisfação com a igreja católica, e estava vendo o que os Reformados e Luteranos estavam fazendo no continente então ele tentou aproveitar de toda a situação. Então dar-lhe o título de “reformador” é muito injusto do ponto de vista eclesiástico. Seu filho Eduardo e muitos sacerdotes desconhecidos dos livros de história foram muito mais importantes para o anglicismo (ou anglicanismo).

Eduardo VI e Mary Tudor.

Em 1534 O rei Henrique VIII Se autodeclara “o cabeça da Igreja na Inglaterra”. Henrique VIII morre em 1547 e seu filho Eduardo VI assume. Eduardo teve contato com o protestantismo continental, os reformados e com os ensinos do Pré-Reformador inglês John Wycliffe. Com o apoio de muitos bispos da igreja episcopal Eduardo começa a reformar a igreja por dentro, algumas mudanças que eles fizeram foram: Mudar a concepção de ceia, de um sacramento para um memorial, remover as esculturas dos santos, a elaboração dos 39 Artigos da Religião (documento mais importante da igreja anglicana) e trouxe protestantes como Bullinger e Bucer para lecionarem nas universidades inglesas, trocou a liderança dos bispos tirando os que se mantinham fiéis ao catolicismo por aqueles que eram adeptos a reforma.

Mas Eduardo morreu com apenas seis anos de reinado devido sua frágil saúde, talvez por isso que ele tenha “corrido” tanto em algumas mudanças, mas certamente não conseguiu fazer tudo que queria. Sua irmã católica, Maria I (Mary Tudor/Maria sanguinária) reinou em seu lugar e perseguiu muitos os protestantes. Mas seu reinado também durou apenas seis anos, e gerou muita insatisfação no povo inglês. Esta perseguição levou muitos protestantes ingleses a mudarem para outro país onde tiveram contato com Anabatistas, Luteranos e principalmente Reformados (O Livro dos Mártires, de John Foxe retrata este período).

Depois de Mary, Isabel (Elizabeth I) sua meia irmã assumiu o trono e reinou por 45 anos. Alguns sacerdotes anglicanos tentavam continuar a reforma por dentro, mas agora a situação era ainda mais difícil, o povo inglês queria paz, os católicos liberdade e os anglicanos se dividiam em diversos grupos (os anos fora fizeram com que cada um recebesse uma influência diferente). Isabel prefere manter a paz, por ser protestante opta pelo anglicanismo, mas não apoia mudanças ou promove perseguições. Seu reinado longo levou os anglicanos inconformados a deixarem a igreja oficial e assim o anglicanismo ganhou os contornos que tem hoje: Uma liturgia parecida com a católica, mas sem os itens supersticiosos, uma forma de governo parecida com a dos luteranos, e uma teologia grandemente influenciada pelos reformados. Em nossa linha de comparação com o catolicismo a igreja episcopal está entre os luteranos (evangélicos) e os reformados (calvinistas).

REFORMA PURITANA (NÃO CONFORMISTA) A outra Reforma que está dentro do movimento inglês é a Reforma dos Não Conformistas, mais conhecidos como “Puritanos”. Quando Isabel (Elizabeth I) opta pelo anglicanismo mais moderado um grupo muito grande continua a fazer críticas e pedir por mais mudanças (mais reformas) como uma de suas reivindicações mais forte era pela pureza da liturgia anglicana eles acabaram ficando conhecido como os “Puritanos”.

O Puritanismo então foi um movimento heterogêneo de grupos protestantes que estavam insatisfeitos com a Reforma Inglesa. O auge do movimento puritano ocorreu no século XVII, mas suas raízes remontam aos reinados de Isabel e seu irmão James Stuart (Tiago I). Do movimento puritano vieram os congregacionais (primeiramente conhecido como “Independentes”), os Presbiterianos, e de uma mistura ou confluência entre Puritanos e Anabatistas vieram os Batistas (oba!). Alguns puritanos famosos desse período são: John Milton – Autor de “O paraíso perdido”, John Bunyan – Autor de “O Peregrino”, John Knox, e Richard Baxter – Autor de “O pastor aprovado”. Tirando os anabatistas os puritanos foram os mais diferentes do catolicismo e o legado deles para o cristianismo e para o mundo como um todo (em especial Inglaterra e EUA) é enorme.

REFORMA RADICAL: Popularmente conhecida como Reforma Anabatista, esse ala ficou conhecida como “radical” por pelo menos três fatores. O primeiro é porque eles foram os mais distantes do catolicismo, o segundo é que eles foram os primeiros a defender formalmente uma separação entre Igreja e Estado. Alguns inclusive exageraram e até hoje nós temos comunidades que vivem em fazendas mantendo um certo distanciamento da sociedade. O terceiro é que embora os anabatistas em geral fossem um grupo muito sério havia também aqueles grupos revoltados e segmentos heréticos, e a repercussão do que esse segundo segmento fazia acabava criando uma má fama para todos.

O termo “anabatista” foi usado diversas vezes ao longo da história, a primeira vez ocorreu no século III (225) após o II Concílio de Cartago. Anos antes do concílio uma grande perseguição assolou o cristianismo e muitos fiéis abandonaram a fé e alguns chegaram a participar de celebrações pagãs. Quando a perseguição cessou alguns desses que havia apostatado voltaram à igreja e pediram perdão, muitas igrejas simplesmente os aceitaram de volta, mas outras começaram a rebatizá-los alegando que a falta de perseverança deles era consequência de sua falta de fé, e como consequência seu batismo não era válido.

O concílio de Cartago negou o rebatismo, mas muitos bispos discordaram da decisão e isso gerou um movimento muito grande. O principal líder neste período foi Novácio, por isso este grupo também é conhecido como Novaciano. Embora Montano e seus seguidores (Montanistas) já tivessem realizado o rebatismo ainda no século II o termo “Anabatista” (rebatizadores) foi usado oficialmente com os Novacianos.

No século IV com a “estatização” da religião, o batismo passou a ser não apenas um sacramento ou ordenança, mas uma espécie de registro civil, ele não apenas simbolizava a entrada na igreja, mas também a entrada no império. Isso nos ajuda a entender duas coisas: A primeira é porque todo grupo cismático (certo ou não) fazia questão de declarar o batismo católico romano inválido e exigiam o rebatismo, a segunda é porque havia tanta rejeição ao rebatismo, porque além do pecado religioso isso era visto como um crime, um sinal de rebeldia ao império. Neste cenário quando algum grupo se separava da igreja oficial por motivos corretos, buscando uma verdadeira ortodoxia eles eram taxados de Anabatistas, ao mesmo tempo quando algum grupo herético rompia com a igreja oficial para pregar falsos ensinos ele também ganhava o nome de Anabatista.

Ou seja, os Anabatistas não foram um grupo único com uma doutrina bem definida e elaborada. Quando falamos dos anabatistas nos referimos a dezenas, talvez centenas, de grupos que surgiram ao longo da patrística e da idade média por motivos diferentes e em locais diferentes sendo a única semelhança entre eles o fato de praticarem o rebatismo.

No período da Reforma podemos dividir os anabatistas em três grandes grupos. Os místicos, que criam que Deus continuava se revelando de maneira espiritual e por isso a Bíblia seria uma revelação secundaria e incompleta; os escatológicos que se isolaram da sociedade, tomaram algumas terras e montaram um governo paralelo; Os racionalistas que tiveram mais contato com os católicos na Polônia negavam doutrinas importantes como a trindade, alegando ser católica e não bíblica. E tínhamos também os anabatistas bíblicos que foram mais sérios, piedosos e pacifistas e são esses os que nos interessam.

Conrad Gebrel, Félix Mantz e Jorge Blaurock ficaram conhecidos como “Os irmãos suíços” eles foram contemporâneos de Zuínglio e deixaram a igreja reformada para se juntar aos anabatistas. Outro anabatista bíblico famoso foi Miguel Sattler autor de uma importante confissão de fé anabatista (A Confissão de Schleitheim). Tínhamos também os Huteristas (seu principal líder foi Jacob Hutter), os Valdenses que surgiram mais de 300 anos antes da Reforma, mas que conseguiram sobreviver mesmo em meio às perseguições. Em 1532 os calvinistas se reuniram com os Valdenses no que ficou conhecido como Encontro de Chanfora (ou sínodo de Chanfora) assim a maior parte dos valdenses se uniu aos reformados.

Mas certamente o grupo anabatista de maior relevância durante a Reforma foram os Menonitas. Seu líder, Menno Simons, era um ex-sacerdote católico cujo irmão morreu no massacre dos anabatistas escatológicos. Este foi um fator crucial para que Menno procurasse entender melhor os radicais e inclusive ajudá-los. Por esse motivo também Simons foi um dos líderes mais pacifistas daquela época, ele preferia fugir e renunciar aos seus direitos do que reagir a agressões. Os Menonitas existem até hoje e se tornaram muito fortes na Holanda, inclusive receberam e influenciaram muitos puritanos ingleses e dessa mistura entre teologia puritana inglesa e anabatista holandesa surgiram os batistas.

POR QUE ESSES NOMES?
É interessante que na história do cristianismo os nomes pejorativos costumam “pegar” e assim os movimentos ficam conhecidos por anos pelos nomes que não queriam quando começaram. O termo cristão começou como uma forma de zombaria pelos incrédulos, o termo Luterano também foi um termo pejorativo que o próprio Lutero detestava, Zuínlgio e companhia foram os primeiros a utilizar o termo “reforma” atribuídos a si mesmo e ao que estavam fazendo, depois de algumas décadas João Calvino (que fazia parte deste segmento) ganhou tanta fama que os reformados foram apelidados, também pejorativamente, de calvinistas, por mais de mil anos o termo anabatista foi um apelido ofensivo para dezenas de grupos que a maioria dos cristãos nem sabem seu nome, o termo protestante surgiu depois de uma reunião (conhecida como Dieta de Espira) onde os evangélicos (apelidados de Luteranos) questionaram tantas coisas e de maneira tão veemente que ganharam o apelido esse apelido. Anglicano, puritano, batista, presbiteriano todos esses termos surgiram como ofensa ou deboche, mas com o passar dos anos se afastaram de seu significado e passaram a ser motivo de orgulho por aqueles que os carregam.

O estudo das Reformas da Reforma é o mais longo e provavelmente o mais importante quando falamos do início do Protestantismo.

André Félix Augusto
Professor de Teologia Sistemática